segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Então

Que a fumaça que um dia respirei
Fortaleça-se em pedra dura
E o cimento que antes pisei
Então se intensifique, mas crie rachaduras

Que a nuvem que tanto contemplava
Tome formas, esbanje sorrisos
E a chuva que silenciava
Dê espaço ao vento, deixe entrar suspiros

Que as árvores que choram folhas
Respirem o ar que desdenhei
Mas que o outono vire primavera
E que o que era memória se apresente ao meu olho
E que o que agora morre volte a nascer
Mas que deixe de ser o que era

Porque quero que o antes retorne
E se torne
O depois pelo qual aguardei
E que quem me tem agora
Ouça quando me vir ir embora
O Adeus por que tanto esperei

E que o choro que agora me afaga
Perca lugar para desconhecidos vícios
Porque o choro é então, e é então que ele se acaba
E é ofuscado por riso infinito

Por fim, desejo que a nostalgia de um inverno
Dê lugar à saudade do verão
E que o agora dê lugar ao então
E que esse então – meu inverno – seja eterno

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Paris, arte e o tempo: fuga infinita

Foi bom ver Woody Allen apelar para a sua necessidade de fuga da realidade e se utilizar de sua capacidade de extravasar e se expressar – expressionar, na verdade, de “expressionismo” – por meio do cinema, ou melhor, da arte. Já me explico.

Assim como algumas outras obras do autor, Meia Noite em Paris carrega uma quantidade considerável de metalingüística. Aqui a discussão é o diálogo traçado entre fantasia e realidade.

Pra variar, Allen não faz a mínima questão de disfarçar seu alter ego no protagonista do novo filme, e é aí que ele se entrega. A metalingüística reside justamente no fato de o personagem principal gostar de escrever – assim como o diretor gosta de dirigir. Pode ser que a questão da fuga da realidade não vigore tanto aí, mas sim naquela problemática de retornar ao passado.

A distância a que se encontra o passado, a abstração de que se faz, a surrealidade que o tange fizeram-no aparentemente melhor, ilusoriamente melhor. Na verdade, o passado tornou-se abstrato ao longo dos anos, e as memórias foram sendo sacralizadas, pois é como se crescessem na mente. Por isso o passado sempre é melhor, o futuro sempre é melhor, mas o próprio tempo – o presente – nunca é bom o suficiente.

A rachadura na realidade que Gil Penders tanto busca também poderia facilmente ser Paris – aliás, é. Não coincidentemente, a cidade escolhida como palco do longa carrega em sua essência a arte, e ainda mais do que isso – carrega o passado. Também não por acaso, uma das personalidades mais louvadas na história é Hemingway, que caracteriza a cidade-luz como um “moveable feast”, ou seja, um banquete, uma festa non-stop em todo lugar, a todo momento. Tradução: Paris é aquilo que serve pra fugir da realidade, mas é a fuga constante, é a fuga infinita.

Indo ainda mais além, o modo como as cenas são filmadas, a fotografia encharcada da arquitetura clássica, de romantismo, de arte, de passado, podem indicar Paris como uma espécie de musa – tanto para Gil quanto para Woody. Não é à toa.

Esse retrato tenta atentar para a ilusão tão comum de que as pessoas seriam mais felizes diante de uma realidade que não a delas. Exemplo: Gil e Inez não parecem ver que eles nunca deixarão de criar discórdias, mas parecem pensar que o casamento mudará tudo. Exemplo: Gil quer viver na Paris dos anos 20. Exemplo: Adrianna, que vive a bohemia dos anos 20, quer viver na Bélle Époque. Exemplo: os artistas da Belle Époque querem viver na Renascença.

O tempo, que seria a escapatória mais confortante, é, no entanto, a mais intangível, então a opção é apelar também para linhas de escape espaciais ou mesmo expressivas. A arte, então, está presente invariavelmente na história, pois a nostalgia que dá em nós quando vemos como era o mundo, como era a vida naquela época acontece justamente por causa dos nomes fundamentalmente artísticos que aparecem. Até mesmo no presente ela é um fator importante, pois percebemos que o mais entendido de música, pintura, de vinhos, de literatura, da arte, é alguém extremamente desagradável – enquanto os entendidos de outrora são louvados, incríveis, maravilhosos.

Nesse diálogo entre fantasia/realidade e arte, não obstante, o tempo é o principal mediador. Como eu disse antes, ele é, afinal, a principal escapatória para aquele que deseja viver outra realidade, mesmo que inconscientemente. Na história, ele se alia às outras formas de fuga – a escrita, o cinema (metalinguisticamente falando), a música, a arte em geral, e até mesmo a chuva. No final, conclui-se que sempre desejaremos afastar nossa realidade e nos aproximarmos de outra aparentemente mais profunda, mais significativa, não importa qual seja. Trata-se talvez de um questionamento, ou até arrisco dizer uma crítica à futilidade e ao vazio dessa edificação da arte, da cultura, do tempo.

À parte o fato de a crítica – se é que isso foi mesmo uma crítica – ser um pouco clichê, o modo de fazê-la foi extremamente imprevisível. Foi bom ver aquela abertura com imagens estáticas da cidade assim como em Manhattan. Foi bom ver o bom e velho ceticismo amoroso fatal de Allen disfarçado de comédia non sense, assim como em Annie Hall. Foi bom ver a forte alusão à Rosa Púrpura do Cairo, em que a arte – mais especificamente o cinema, nesse caso – representa a fuga mais eficiente para o protagonista, para o diretor e para seu alter ego – que também leva o nome de Gil. Foi bom ver Woody de volta.

Depois as pessoas ainda têm coragem de me perguntar por que eu gostei tanto desse filme.