Eram quatro horas de uma tarde de janeiro e fazia 6oC na Rua Augusta, em Lisboa. Lá fora, o sol vigoroso fracassava na tentativa de aquecer o que o inverno esfriava. O céu, no entanto, era um azul só e, nas calçadas, clientes acomodados em mesinhas de madeira para um chá da tarde deliciavam-se com o fado de Amália que tocava na loja de discos. O cheiro, uma mistura de uma leva de pastéis de Belém acabados de sair do forno, com a brisa do Tejo que fluía lá depois da Praça do Comércio. Dentro de um restaurante, esperava meu bacalhau cozido com batatas e tomava uma água com gás. Duas senhoras em sua melhor idade sentadas ao meu lado conversavam e tomavam um café preto.
- Será que ele não pod' fechar esta cortina? – ouvi uma delas reclamar.
- O que acontece? É ela a vir? – perguntou a amiga.
- Sim. Tardou, mas não falhou.
- Tem certeza d' que não está enganada?
- Tenho sim, está a me seguir há semanas, esta maldita.
- Ora pois, livre-se dela duma vez. Conheço a pessoa e a solução perfeitas pra t' ajudar.
- É sério? Ajud'-me então. Quero dar um jeito nela, mas não sei como.
- Bem, a primeira coisa a se fazer é...
- Ora, fale baixo minha cara, não queremos ser indiscretas.
- Ah sim, estás certa.
Meu bacalhau acabara de chegar à mesa.
- Conte-me quando estivermos sozinhas. Melhor.
- Sim. Melhor.
- Com licença, não vais ficar chateada comigo, mas se incomoda se eu p’rguntar quanto vale est’ prato? – virou-se para mim docemente.
Eu na verdade nem tinha olhado o preço no cardápio, então não sabia.
- Imagine. Não tenho certeza, mas acho que seis euros.
Ela acenou com a cabeça e voltou à cúmplice:
- Não sei quanto ao daqui, cara, mas o bacalhau à Braz do Correeiros é bastant’ bom.
- Hum...
- Mas mais caro.
- Hum...
- Outra coisa que ‘stá a me perseguir e a me deixar louca é esta fome que não se acaba.
A colega ria discretamente com a mudança casual de assunto.
- Já tomei meu café d’ tarde, comi três daqueles pasteizinhos que a dona Piedade faz, iguaizinhos aos da Fabriquinha, e quero almoçar mais uma outra vez!
- Almoces, ora pois!
- ‘Stou a tomar um remédio para o cansaço. Só pode ser. Só pode ser ele que ‘stá a me dar sempre “ap’tite”.
- Sim, sim. E bacalhoada não fará lá m’to bem a essas horas.
- Um doce!
- Como?
- Joaquim, traga-me o creme da casa!
Acredito que falavam sobre menopausa.
Parece que existe no cérebro uma zona perfeitamente específica que poderia chamar-se memória poética e que registra aquilo que nos encantou, aquilo que nos comoveu, aquilo que dá à nossa vida a sua beleza própria(...) (Milan Kundera- A INSUSTENTÁVEL LEVEZA DO SER)
quinta-feira, 20 de outubro de 2011
quarta-feira, 19 de outubro de 2011
Ici
Flui cinza, nunca índigo
O rio
Venta em alvidão, mas não vejo uniformidade
No céu
A noite aberta em outros, lá é
Fechada em mim
E como a gota d’água
A lua enche em clarão
Não mais em metáfora
O rio
Venta em alvidão, mas não vejo uniformidade
No céu
A noite aberta em outros, lá é
Fechada em mim
E como a gota d’água
A lua enche em clarão
Não mais em metáfora
Dentro
Caio outra vez sob o peso do medo
Sem que minhas pernas tremam
Sucumbo ao tremor tempestuoso
Que vigora dentro de minha mente
De meus pensamentos
De minhas especulações
O maior dos riscos está por vir e
Sua idéia faz-se tão suficientemente presente
De tal forma que não me atrai mais um no momento
Perdão
Por ser medrosa
Sem que minhas pernas tremam
Sucumbo ao tremor tempestuoso
Que vigora dentro de minha mente
De meus pensamentos
De minhas especulações
O maior dos riscos está por vir e
Sua idéia faz-se tão suficientemente presente
De tal forma que não me atrai mais um no momento
Perdão
Por ser medrosa
Vanguarda parnasiana
Gostaria de saber ser poética
Saber rimar como manda a estética
Mas consideremos uma situação hipotética
Em que eu não ligue tanto pra fonética
Seria tanta heresia
Criar em ‘obra’ uma assimetria
E ao feio fazer apologia
E no lindo transpor anomalia?
Minto,
Jamais seria tão cética
A ponto de tornar-me herética
E ignorar toda a dialética
Dessa tal poesia
Saber rimar como manda a estética
Mas consideremos uma situação hipotética
Em que eu não ligue tanto pra fonética
Seria tanta heresia
Criar em ‘obra’ uma assimetria
E ao feio fazer apologia
E no lindo transpor anomalia?
Minto,
Jamais seria tão cética
A ponto de tornar-me herética
E ignorar toda a dialética
Dessa tal poesia
segunda-feira, 10 de outubro de 2011
Primavera escolar
Desabafo:
Era uma manhã de terça-feira. Os raios solares trespassavam as frestas entre as folhagens das árvores de pau-ferro. A pequena, porém rara variedade na flora cheirava a nostalgia, e a alta freqüência do canto dos pássaros ao longe brigava com os murmúrios vindos de dentro dos prédios.
Além do verde, formas esfumaçadas constituíam-se em nuvens passantes, e o olor da brisa contrastava com o tabaco tragado e cuspido nos arredores. Em volta, tijolos envelhecidos das construções em meio ao bosque ralo alternavam-se com janelas de vidro e vigas enferrujadas. Da mesma forma, no chão, restos de cigarro intercalavam-se com o manifesto silencioso do musgo que nascia debaixo das pedras cimentadas.
O sabor era de tempos passados, e havia no ar uma sensação de tranqüilidade, não obstante pairasse no ar o desespero berrante inerente aos alunos que caminhavam por lá.
Era uma manhã de terça-feira. Os raios solares trespassavam as frestas entre as folhagens das árvores de pau-ferro. A pequena, porém rara variedade na flora cheirava a nostalgia, e a alta freqüência do canto dos pássaros ao longe brigava com os murmúrios vindos de dentro dos prédios.
Além do verde, formas esfumaçadas constituíam-se em nuvens passantes, e o olor da brisa contrastava com o tabaco tragado e cuspido nos arredores. Em volta, tijolos envelhecidos das construções em meio ao bosque ralo alternavam-se com janelas de vidro e vigas enferrujadas. Da mesma forma, no chão, restos de cigarro intercalavam-se com o manifesto silencioso do musgo que nascia debaixo das pedras cimentadas.
O sabor era de tempos passados, e havia no ar uma sensação de tranqüilidade, não obstante pairasse no ar o desespero berrante inerente aos alunos que caminhavam por lá.
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