segunda-feira, 11 de junho de 2012

Quase memória, quase jornalismo

Mais uma reciclagem de texto - este foi o resultado do que deveria vir a ser uma resenha da belíssima obra de Carlos Heitor Cony, 'Quase memória'. Eis:

"Comovente coletânea de memórias póstumas de uma figura carioca das primeiras décadas do séc. XX, ‘Quase Memória’ impressiona pela delicadeza na condução da história, ora tida como romance, ora tida como um relato de memórias. Escrita em 1995 por Carlos Heitor Cony, a obra, que representava o regresso do jornalista ao mundo da literatura após vinte anos, ganhou, em 1996, os prêmios Jabuti de Melhor Romance e de Livro do Ano, pela Câmara Brasileira do Livro.

A memória é o tema explorado pelo autor, que decide traduzir lembranças de feitos memoráveis de seu pai, Ernesto Cony Filho, para um relato extremamente sensível de uma infância cheia de cheiros, gostos, decepções, vergonhas, orgulhos e todas as peripécias de um jornalista com invejável amor à vida.
Um embrulho entregue a Cony na recepção de um hotel cujo restaurante ele freqüenta é o fio condutor da história. Aspectos como o papel utilizado para o embrulho, a perfeição com que o nó do pacote fora feito, a tinta roxa da caneta que o endereçava ao jornalista, bem como os cheiros que transbordavam de sua presença avassaladora foram decisivos para levar Cony à conclusão de que seu pai fora o remetente.

A chegada do pacote foi a porta de abertura para uma tempestade de lembranças que Ernesto Cony Filho, pai e jornalista, protagonizara. Carlos Heitor faz interessante uso da sinestesia em suas reminiscências, uma vez que a cada história, a cada fato narrado, ele incorpora o cheiro que lhe vem à mente, ou, no caso dos sanduíches, do caldo de jacaré, por exemplo, é o gosto que toma forma. As cores dos papeis de seda usados para fazer os balões tão inesquecíveis, o gosto das balas de cevada, os cheiros de manga, de brilhantina, de alfazema, tudo se elucida no que Cony chama de ‘quase-memória’.

É interessante perceber a intercalação entre presente e passado que o autor explora para manter o leitor interessado. O embrulho, como fio condutor, é o que traz à tona as lembranças, as histórias das peripécias de seu pai , de suas manias, seus hábitos, seus costumes. No entanto, ele próprio é a história, não só pela bagagem que carrega (tanto no físico quanto no pensamento), mas porque o mistério de seu conteúdo é justamente o que faz o leitor querer continuar a leitura.

No final, o fato de o jornalista escolher não abrir o embrulho pode ser entendido como uma forma de respeito às crenças do pai, talvez até mesmo uma metáfora para as características mais marcantes do mesmo. O conteúdo do pacote, como se demonstra ao final da obra, não é o que realmente importa, mas sim a viagem pela imaginação repleta de boas lembranças. Da mesma forma, para seu pai, não é a conclusão de uma viagem à Itália, não é a fórmula perfeita de uma fragrância de perfume o que fazem a vida valer a pena, e sim as ideias, as tentativas, as histórias, o imaginar, o querer fazer, e o fazer de forma feliz.

A conclusão do jornalista, ao final de uma tarde trancado numa sala de escritório frente a frente com um embrulho enigmático, é que não se havia a necessidade de descobrir o que estava dentro dele. Havia apenas as lembranças de um tempo que permaneceu lapidado em sua mente ao longo de décadas. Havia as lembranças vívidas, com cores, cheiros e sabores, tudo em sensações extremamente intensas. Isso já era o suficiente.
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‘Quase memória’ (em algumas publicações com o titulo ‘Quase memória: quase romance’) representou uma ruptura na literatura brasileira no que diz respeito ao relato de memórias. Por não se tratar especificamente de uma “resolução” de assuntos pendentes, ou de uma vingança, de uma saudade triste e inconformada, a obra de Cony trouxe ao público brasileiro um romance antológico sobre as delicadezas, complexidades e nuances da relação entre pai e filho.

Numa reflexão à parte, vale notar a carga que a obra de Cony traz através do que parecem ser simples relatos de uma infância. É importante lembrar que o jornalista, em sua mais pura e básica conotação, detém o poder da informação, e é responsável por levá-la à população. Como ele próprio diz, o intuito inicial da obra não era fazer um romance, muito menos uma grande reportagem jornalística. Não se trata de jornalismo, no entanto, trata-se de um livro com aspectos literários (a linguagem predominante é evidentemente lírica) escrito por um jornalista.

O fazer jornalístico é inerente a Cony, e a marcante característica da obra de basear-se em fatos reais já o orienta para esse sentido. Vale ressaltar que ‘Quase memória’ não é, de forma alguma, um relato objetivo, já que as próprias narrações têm como ponto de partida algo tão subjetivo: a memória – e as memórias – de CHC.

Expoente da obra literária brasileira, o livro transcende os limites do jornalismo tradicional, mas agrega aspectos do gênero a um relato cuja simplicidade na linguagem encanta. Ao mesmo tempo, percebe-se uma complexidade na forma que Cony utiliza para reviver um tempo passado e atrelá-lo ao presente e ao mistério do pacote. ‘Quase memória’ é a prova de que é possível escrever sem estar obrigatoriamente preso às amarras de gêneros específicos da escrita, e de que se pode fazê-lo com beleza e simplicidade, mesmo quando o tema abordado tem carga atroz."