sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Na Praça do Patriarca

Aproveitei a ida ao centro nesta tarde e entrei na Martins Fontes pra tomar aquele café gostoso que eles têm lá. Percebi que havia já um bom tempo que não lia algo não-relacionado ao tema do meu TCC e fui procurar um bom livro. Rodei, rodei, rodei. Olhei para a vitrine e comecei a rir ao ver o reflexo da minha pessoa carregando nos braços uma pilha de mais de dez livros e perceber que meus surtos de consumismo não ocorrem apenas em lojas de sapato. Atrás de mim, no reflexo, um moço de aproximadamente trinta ou trinta e cinco anos, alto, vestia trajes pretos, tinha piercings e tatuagens all over, e um cabelo que misturava aleatoriamente algumas partes muito longas e outras raspadas.

Pensei um pouco e decidi que não adiantava querer dominar o mundo e levar oitenta livros de uma vez sendo que, num futuro próximo, leria não mais que um ou dois. Pedi então ajuda a um vendedor. Baixinho, magro, atarracado, o jovem uniformizado de uns vinte anos mostrou-se predisposto a ajudar, talvez por achar que ia levar uma baita comissão em cima da minha compra. Coitado. Ele me olhava por debaixo dos óculos fundo de garrafa e me ouvia explicar o interesse recente em matérias relacionadas a teologia e religião. Neste momento o revolucionário do punk, que até aí já tinha me lançado uns olhares de desdém, soltou algo que mais parecia um catarro, um suspiro ou uma risadinha muito arrogante. Ignorei. Continuei esclarecendo ao vendedor que não buscava nada que pregasse, mas sim algo que incitasse a reflexão. Outra catarrada atrás de mim. Olhei pra trás, estampei um sorriso largo e fiz o desejo cínico: "Saúde".

O quatro-olhos, interessado em fazer a venda e visivelmente entediado com a calmaria do movimento, aproveitou a deixa pra se aproximar: "Você estuda teologia?" "Não, Jornalismo", foi a resposta que antecedeu o comentário fatal do cabeludo rebelde ainda atrás de mim: "Tinha que ser". Virei-me mais uma vez, abri outro sorriso e pedi a repetição: "Perdão?" "Jornalistas...", acenava com a cabeça de um lado a outro, como se inconformado com a natureza da minha formação. "O que temos?", fiz questão de parecer curiosa, afinal, estava. Neste momento, esperava qualquer tipo de retorno que me fosse fazer rir, ainda que se tratasse de um comentário ofensivo. Não me preocupei e muito menos enervei, já que ali, naquela pequena livraria, era nada além de uma pobre mortal querendo se aculturar um pouco; o quanto minhas condições intelectuais e financeiras me permitiriam.

Para o homem dos cabelos longos, minha aparência e meu curso de graduação já garantiam a certeza de que essas minhas tais condições intelectuais não iam muito longe. Afinal, eu não passo de "mais uma jovem recém ou quase-formada neste curso tão fútil e vil, que não se contenta com as parcas vantagens que a minha escolha de carreira me impõe, e então busca assuntos de nível superior à mentalidade rasa de um jornalista" (sic). "Como?", perguntei meio sem reação à explicação exageradamente formal. "Ok, vou ser mais claro. Vocês, jornalistas, acham que podem escrever sobre tudo, mas a verdade é que não entendem matemática, não entendem medicina, não entendem economia." "Isso é generaliz..." "Pensam que sabem um pouco de tudo, mas a verdade é que não sabem nada de nada. O Datena é o melhor exemplo".

Depois da finalização épica do jovem tatuado, espectadorizada pelo CDF que me atendera, decidi que minha resposta, qualquer que fosse, jamais estaria ao nível de tal presunção, tão lindamente fundamentada em preceitos profundos e filosóficos. Abri um terceiro sorriso largo e ative-me à dificuldade de escolha entre os muitos títulos em meus braços. O quatro-olhos sorriu pra mim e disse "Esse do Krishnamurti é muito legal. Você vai gostar". Levei o sugerido intitulado "Pense nisso" e saí rindo pela Rua São Bento.

Jornalistas...

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Prefácio do livro 'Resquícios e Retratos: o manganês e a memória social de Serra do Navio'

A memória social navega por entre os imaginários coletivo e individual, enquanto permuta e atua na transformação imediata e constante de cada um de nós. Memória é o que nos faz quem somos, e é a partir disso que ela própria se configura.
Abaixo, alguns parágrafos que resumem o resultado de um ano de muito esforço e dedicação por parte de um grupo encantado com o que o Amapá e, mais importante, a pequena vila de Serra do Navio têm a oferecer a nós, brasileiros.
Abaixo, o início do livro que, mais que qualquer outra coisa, trouxe à tona fatias de nossa memória e ao mesmo tempo formou uma significação individual muito mais elaborada daquilo a que costumam chamar...: realidade.
Abaixo, o prefácio do livro 'Resquícios e Retratos: o manganês e a memória social de Serra do Navio', escrito por Alice Camargo, Lana Ruff e Thais Ozzetti, para o trabalho de conclusão do curso de Jornalismo no Mackenzie.

"Partiu-se da vontade de conhecer diferentes realidades de um país tão vasto e culturalmente rico, unida ao interesse por histórias regionais relevantes em âmbitos social, cultural, político e econômico, porém pouco conhecidas e divulgadas. Não por acaso escolhemos o Estado do Amapá como palco desta obra, já que até hoje esse pedaço de Brasil quase não é reconhecido ou noticiado. No entanto, não bastava encontrar uma história interessante, ainda que fosse no interior do extremo norte. Descobrimos um enredo mais profundo do que era possível imaginar, uma narrativa na qual o personagem principal é um município que vive de resquícios; e seus moradores são retratos de um passado até hoje presente. As memórias são a chave desta história, exploradas para entender a singularidade da cidade que durante tantos dias foi a nossa principal companheira: Serra do Navio.

Na década de 1940 em plena Amazônia Oriental, numa região que hoje corresponde ao território do Amapá, foram encontrados indícios de manganês - mineral essencial para a produção de aço. A descoberta acarretou grandes mudanças não somente ao cenário brasileiro, mas também ao panorama mundial, que contemplava o início da Guerra Fria. O minério então assumia função essencial para a indústria bélica, que tinha grande interesse na compra do minério. Na concorrência aberta pelo Governo Federal para decidir quem daria conta das explorações, ficou decidido que a empresa vencedora deveria investir grande parte dos lucros em intervenções sociais, melhorias urbanas e implantações nos sistemas de saúde e educação. Dava-se aí o início de uma grande história repleta de riquezas, co-protagonizada pela Indústria e Comércio de Minérios S.A. (ICOMI), vitoriosa da licitação.

A outra grande personagem da história foi a região que abrigava as enormes jazidas de manganês, posteriormente denominada Serra do Navio. A pequena vila previamente arquitetada para abrigar as pessoas que viriam trabalhar nas minas teve tudo a seu dispôr. Todas as condições contratuais foram cumpridas, e o Estado do Amapá ganhou ainda um complexo portuário no pequeno município de Santana e mais de duzentos quilômetros de estrada de ferro. Foi depois de quase meio século de exploração que a ICOMI decretava a extinção de suas atividades, alegando o fim da rentabilidade do negócio. Serra do Navio perdia sua mãe, a “mãe ICOMI”. Os moradores da pequena cidade viravam órfãos. Milhares de pessoas, trabalhadores e suas famílias, ficaram sem perspectiva de vida. Muitos partiram da desolada vila em busca de um novo começo, enquanto outros se agarraram ao pouco que lhes restava: o enorme carinho pelo local que durante tanto tempo lhes proporcionara paz e felicidade. Este livro é resultado de uma viagem enriquecedora ao eterno lar dessas pessoas.

A ideia inicial era resgatar uma memória coletiva, e acabamos descobrindo que esta memória jamais se esvaíra. Pelo contrário, entendemos que em Serra do Navio, uma cidade feita de saudade, as lembranças de um tempo que nunca mais volta vigoram de forma atroz. O entrelaçamento das vidas de personagens tão diferentes entre si denota uma realidade comum a todos: a escolha de permanecerem juntos e ultrapassarem o longo período de desesperança que a vila viveu.

Num só palco para várias histórias, presente e passado confundem-se num só tempo: o tempo da memória."