segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Iconofagia por trás de uma sociedade imagética

O texto a seguir serve à proposta de fazer uma análise de algum fenômeno de repercussão meteórica semelhante ao caso do Michel Teló. Por sugestão de um amigo, a pauta escolhida foi o site 9gag, e o único referencial teórico que usei foi o (excelente) livro do Norval Baitello Junior chamado 'A Era da Iconofagia'. O original deste aqui respeita normas e a estilística acadêmicas, e mesmo tendo feito algumas adaptações, a linguagem permanece formal. De qualquer forma, a perspectiva é interessante pra quem se aventura a refletir as possibilidades que plataformas interativas da internet nos guardam. Segue:

Para iniciar uma reflexão em torno dos modos de reprodução do homem, bem como do uso imagético que ele faz, é preciso atentar-se para a origem de todo e qualquer processo de comunicação, o corpo. Da mesma forma, o corpo é o ponto de chegada do mesmo processo, que envolve irrefutavelmente uma conjuntura histórico-social, inerente à memória, aos modos de percepção e, mais amplamente, à cultura.

Em pleno século XXI, o homem vê-se como parte de uma sociedade imagética, onde a representação visual (e também olfativa, gustativa, tátil e auditiva) nos apelos midiáticos representa a única possibilidade de vida para os símbolos presentes no inconsciente coletivo.

O psiquiatra Heinrich Fierz explica o conceito de símbolos diretores como a referência maior em uma cultura, e esses símbolos, enquanto sínteses sociais, têm efeito não só na memória coletiva, mas na consolidação da psique do indivíduo. É interessante atentar-se para a relevância, portanto, que as imagens têm no processo de formação de uma cultura, dos valores e das mensagens que dela fazem parte.

O que Norval Baitello Junior ressalta tendo em vista a sociedade imagética é a reprodutibilidade desenfreada dos símbolos, mais especificamente das próprias imagens. Ele aponta diversos fatores críticos que surgem dessa situação, como o que Dietmar Kamper chama de crescimento exponencial da invisibilidade, além da inflação da reprodução e a obsolescência gradativa dos signos.

Colocando as teses de Baitello Junior em prática, utilizamos o exemplo de um website chamado 9gag. Quando em 2008 dois irmãos chineses decidiram fundar este site, houve uma surpresa em virtude do sucesso meteórico que ele alcançou em menos de quatro anos, atingindo 60 milhões de acessos únicos por dia e cerca de 1,7 bilhão de pageviews diários no mundo todo. O slogan Just for fun explica a proposta do site, que é provocar diversão a partir da criatividade e inteligência de quem participa.

O 9gag, feito pelos usuários e para eles, trata-se de uma plataforma onde os participantes postam imagens autorais e aguardam a aprovação dos outros. Em vista dessa aprovação, há três páginas de categorias dos gags (termo empregado para designar cada imagem postada), sendo que um gag novo é direcionado à Vote Page. Caso consiga o número de aprovações necessário, vai à Trending Page e, posteriormente, seguindo os mesmos critérios, à Hot Page.

Em geral, as imagens que compõem o 9gag baseiam-se em memes, ou seja, mensagens que se repetem e se repetem de pessoa para pessoa ou de local para local, podendo ou não ser minimamente modificadas. Termo criado em 1976 por Richard Dawkins, o meme representa uma unidade de informação especialmente armazenada pela memória que tem um poder maior de autopropagação, e pode se dar na forma de imagem, vídeo, som, ou até mesmo de uma fala. Neste site especificamente, os memes pautam as publicações e podem variar de acordo com acontecimentos externos (eventos políticos, situações polêmicas em voga, etc).

Na tentativa de relacionar a valorização da imagem que os meios eletrônicos trouxeram ao modelo de funcionamento do site em questão, penso o conceito original e etimológico da palavra ‘imagem’. Do latim imago, refere-se ao retrato de um morto, portanto, como afirma Baitello Junior, implica a ausência de uma presença e, da mesma forma, a presença de uma ausência.

Em suas mais diferentes configurações, as imagens propiciam significações infinitas, e portanto obscuras, escondidas estas nas camadas da história, do tempo, da memória e da cultura. De qualquer forma, tais significações imergem no inconsciente coletivo e fazem com que a disseminação de imagens, ainda mais com a colaboração das redes sociais, seja infinitamente facilitada.

A velocidade com que as imagens são postadas na primeira página do 9gag e transferidas para as próximas faz com que muitas vezes elas se percam em meio ao bombardeio de gags vindo de todas as partes do mundo. Como proclamou Baitello Junior, “a lógica da sociedade imagética pensa a curto e curtíssimo prazo, o prazo da última repetição, da última reprodução, que já estará obsoleta antes mesmo do término de sua curta vigência.”

A reprodução acelerada vista na internet, e especialmente em espaços digitais como o 9gag, acarreta o “processo inflacionário das imagens que fecham portas para o mundo por serem construídas a serviço do vetor de exteriorização [...], sem a interioridade da imaginação”, como afirma mais uma vez Baitello Junior. Na verdade, os gags “autorais” vêm muitas vezes com uma mensagem não subliminar, mas explícita, escancarada para aquele que quer a união dos fatores facilidade e velocidade para consumir – e devorar – mais e mais imagens. Segundo ele, “apresenta-se aí a temática da ofuscação pela desmesurada proliferação das imagens e do tempo acelerado gerado por sua reprodução. Assim, aceleração e inflação, por operarem no registro do excessivo, inevitavelmente geram perdas.”

A perda a que ele se refere jaz na efemeridade das imagens sucessivamente disseminadas e consequentemente consumidas. Imagens exógenas, ou seja, que visam ao externo e se manifestam, proliferam e reproduzem indiscriminada e compulsivamente, levam a nada além de outras imagens, num processo infinito e desenfreado de sucessão e substituição. Irrefutavelmente, é para este caminho que apontam os memes e o modelos de reprodutibilidade de sites como o 9gag.

Por trás do processo de exteriorização inerente aos símbolos exógenos (em detrimento da interiorização dos mesmos), vê-se não só a procura das imagens, mas também pelas imagens. Uma vez que elas vão de encontro aos nossos olhos, antes que as vejamos, elas nos vêem. É a partir dessa reflexão que Dietmar Kamper atribui ao “padecimento dos olhos” a “principal enfermidade de nosso tempo”. Unida a ele, vem a perda da profundidade nas percepções corporais e mentais.

Norval Baitello Junior utiliza o termo “superfície” e, posteriormente, “epidérmica” para referir-se à nova ordem social que se alastra e se apóia na chamada “serial imagery”, a produção e reprodução em massa das imagens. Vemos acontecer este fenômeno de forma cada vez mais explícita, e o site 9gag fundamenta-se em relativamente poucos tipos de imagens, de modelos. É a partir destes modelos que vão ocorrendo as reconfigurações, e cada usuário vai adaptando-o conforme seu pensamento criativo. No fim, torna-se um espaço destinado à repetição interminável de símbolos pré-produzidos e pré-definidos. Para ele, “a nova sociedade não mais vive de pessoas, feitas de corpos e vínculos, ela se sustenta sobre os pilares de uma infinita “serial imagery”, uma sequência infindável de imagens, sempre idênticas. O admirável e desejável já não é mais a diferença, mas a absoluta semelhança. Não mais a capacidade criativa e adaptativa é o que se sobressai, mas sim a necessidade de pertencimento.”

Justamente o “amor” ao site que os próprios usuários ironizam nos gags, uma espécie de vício de muitos que sucumbem à força maior da barra de rolagem, sem conseguir fechar a janela, dá-se pela necessidade de pertencimento. Entrar em contato com outro indivíduo do lado oposto do planeta – e descobrir que ele possui pensamentos e percepções similares – significa perceber um companheirismo, significa a fuga da solidão. Significa fugir da solidão por meio dos símbolos.

A necessidade adquirida pelas pessoas de entrar em contato com imagens que façam jus a certo aspecto de sua vida, que remetam a um aspecto de sua história, que façam parte de sua memória, fez com que as próprias pessoas se tornassem imagens, ou meramente ecos das imagens. Alguém que navega o site e visualiza um post específico que cumpriu essas condições e traçou uma relação em algum ponto da memória – individual ou coletiva – deste usuário, vai reproduzi-la de uma forma ou de outra em determinado momento de sua vida. Seja por meio da fala, de um desenho, da escrita ou qualquer outro modo, esta imagem terá um eco.

A partir deste eco, a reprodutibilidade manter-se-á, num processo infinito de produção de imagem em cima de imagem. Dá-se então o fenômeno da iconofagia, termo empregado por Baitello (2005) para designar a gula das imagens, seu auto-consumo, a devoração delas e por elas: “Assim, há tempo as imagens procedem de outras imagens, se originam da devoração de outras imagens. Teríamos aí o primeiro degrau da iconofagia. As imagens que povoam nossos meios imagéticos se constituem, em grande parte, de ecos, repetições e reproduções de outras imagens, a partir do consumo das imagens presentes no grande repositório. O segundo degrau da iconofagia surge quando nós humanos começamos a consumir as imagens.”

Baitello parte dessa reflexão para reafirmar o uso superficial que temos da imagem, uma vez que utiliza o termo “consumo”, que tem o sentido etimológico do latim “devorar”, “destruir”, “extenuar”. Há cada vez mais eco, cada vez mais consumo, mas há cada vez menos processamento da informação, uma vez que as imagens, com o objetivo de serem elas mesmos consumidas, devoradas, nos são dadas já “mastigadas”. Trata-se de um processo ao qual o autor atribui a denominação de "alimentar por espelhamento".

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