sábado, 19 de outubro de 2013

Flores de liz, colo de vó e a Rita Cadillac

Ela entrou ansiosa pelo aconchego eventual que quatro paredes - neste caso floridas - de um bar qualquer pudessem lhe proporcionar. 'Onze Graus Celsius' marcava o relógio da cidade, com sensação térmica de sete. Ou cinco. O asfalto era tão gelado quanto o contato dos dedos com o copo americano em seu mais glorioso estado: cheio. Pareceu-lhe conveniente e suficientemente brasileiro pedir um caldinho de feijão. Nada de harmonização, apenas goles quentes e gelados de sabores salgados e amargos, ou nostálgicos e terapêuticos (respectivamente, ou não). À mesa, o feijão e a cerveja, ambos em copo americano, cada um no seu.

Não fosse São Paulo, estranharia o mendigo na calçada se esquentando com a caixa de uma TV que deveria ter mais polegadas do que Hong Kong tem gente. Ele estava feliz, já que um menino de cabelo loiro conversava com ele tão proximamente quanto seu desapego social lhe permitia chegar. E digamos que ultimamente ele parecia empenhado no desapego - e o empenho crescia na mesma proporção da conta do bar. Ele olhava no olho do homem de rua, que aceitava o convite inebriado para se hospedar em sua casa. Enquanto isso, a moça que acompanhara o ariano politicamente correto até então olhava o céu e parecia ver ali a beleza que quem está bêbado e/ou entediado normalmente vê. Recentemente trocada pelos encantos desprendidos do nômade, decidiu-se por tentar fazer das meninas que fumavam ali umas amizades novas.

Papos metalinguísticos sobre a habilidade social empreendida pela necessidade do cigarro, do isqueiro e de afins não necessariamente lícitos desenrolaram-se para além do frio. E as risadas de inconformismo lúdico em direção ao menino loiro empenhado em salvar o mundo não cessaram até que um sanduíche chegasse à sua mesa, ele e seu recheio de frango, salada, catupiry e queijo amarelo. Clássico, porém vulgar. E indiscutivelmente apetitoso. Talvez por isso estivesse no cardápio sob o nome de 'Rita Cadillac'.

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Papo bom

São Paulo, Vila Madalena, balcão do Bar Salve Jorge, 14 de Outubro de 2013, 21h36. E o diálogo que se seguiu.

- Você gosta de Britney Spears?
- Ahn?
- É, você tá aí, sozinha, cantarolando.
- Ué, tá tocando a música.
- Eu sei. Mas você conhece.
- Conheço. Tocou no rádio.
- Mas você gosta?
- Ahn?
- De Britney. Você gosta?
- Por que você quer tanto saber se eu gosto de Britney Spears?
- Sei lá. Ué. Você é bonita, parece inteligente, mas tá aí sozinha cantando Britney Spears.
- Hum. Pois é.
- Por quê, hein?
- Por quê o quê?
- Por que você gosta de Britney Spears?
- Eu disse que eu gosto?
- Não.
- Então…
- Mas não disse que não gosta.
- Ai! Moço, você tá bêbado.
- (Risos). Eu não estou não, também tô na primeira capirinha.
- A minha é caipiroska.
- Ah...
- É...
- Então você gosta de Britney Spears e de vodka.
- (Risos). Que obsessão!
- (Risos). Desculpa.
- Tá desculpado. Mas sim, gosto de Britney Spears e de vodka. Não necessariamente nessa ordem.
- Há!
- Ahn?
- Sabia!
- É, mas acho que seu interrogatório me fez gostar mais ainda.
- Impossível. Não entendo o que se passa na cabeça das pessoas pra gostar disso. E nem de dono de bar assim pra tocar.
- Que revolta!
- Não é revolta. É só gosto.
- Esses cultos dos dias de hoje em dia, viu?
- Que culto? Precisa ser culto pra perceber que isso aí é uma merda?
- Viu? Revolta.
- (Risos). Pode ser. Mas você é muito inteligente pra ficar ouvindo essas coisas.
- Moço, me dá mais uma dessa? Mas pede pra fazer mais fraca dessa vez? Brigada. Muito inteligente? Você nem me conhece.
- Ué, mas dá pra ver.
- Dá pra ver que estou num nível acima da Britney?
- Dos fãs da Britney.
- Eu sou fã da Britney.
- Por quê, mano? A música é uma merda.
- Sei lá mano. Eu curto.
- Você curte música merda então? Já sei, cê deve ser fã do Los Hermanos.
- (Risos). O que tem a ver?
- Tudo merda.
- Ó, vossa excelência proclamadora das merdas musicais contemporâneas.
- Você fala bonito.
- Mas tenho mau gosto musical.
- Ninguém é perfeito.
- Meu defeito é ser fã da Britney?
- Ah… você tem as sobrancelhas meio tortas também.
- Oi??? Que tipo de homem repara nisso?
- Tem, não tem?
- Não o suficiente pra ser um defeito apontável, assim, num bar por um estranho.
- Tá bom, desculpa.
- Nem sei seu nome e você já pediu desculpas duas vezes.
- É mesmo. Que absurdo. E não sou nem eu que gosto de Britney Spears.
- Ahhhhh então eu tenho que me desculpar por gostar de Britney Spears?
- Só se você quiser.
- É… não quero.
- Deveria, a qualidade da música é uma merda.
- E por que apreciar uma pessoa só pela qualidade da música?
- Ah, e eu que sou o cult.
- Oi???
- Lá vêm as reflexões filosóficas. E eu que sou o cult!
- Claro que é! Eu que tô falando que gosto da música trash.
- Ah, então você admite que é trash.
- Ai, que saco! É trash e eu gosto.
- Nossa, como você é autêntica.
- Oi???
- Você é autêntica.
- E essa ironia desnecessária? Você é um intrometido que
- Hipster.
- Eu??? Você que se recusa a gostar de qualquer coisa que não seja Tulipa Ruiz ou Godard.
- Tulipa Ruiz? Não, brigada. Fico em casa ouvindo meu gato miar.
- (Risos). Pois eu fico em casa ouvindo Britney.
- Você ouve Britney em casa?
- Não, mas agora vou começar.
- Ai, hipster e do contra. Grande, manda mais uma aqui também, por favor.
- Caipirinha com cachaça é hipster.
- É nada, é clássica.
- Ai, então tá. Tchaikovsky e Godard.
- (Risos). Melhor que Britney Spears.
- Depende.
- Nunca depende!
- Ai, que prepotente você. Que que tem de tão errado com Britney Spears?
- A música é muito ruim, mano.
- E daí que é ruim, mano? Aposto que tem muito mais gente dançando Britney na balada do que Édith Piaf.
- Ah, vai me dizer que por isso Britney é melhor que Édith Piaf.
- Não.
- Ahn…
- Mas Piaf não é melhor que Britney.
- Ave! Alguém exorcisa a menina aqui.
- (Risos). Petulante. Tá falando pra me encher o saco.
- Não é possível. Eu? Você que tá falando pra me provocar!
- Ah… você que veio puxar assunto. Tava aqui no meu canto.
- No seu canto cantando hit me baby one more time.
- Ó lá. Sabe até a música.
- (Risos). Todo mundo sabe.
- Viu?
- Viu o que, criatura?
- Criatura é bom, hein. Viu, todo mundo sabe a música dela. Ruim não pode ser.
- Todo mundo sabe porque é ruim!
- E daí? Precisa ser boa? Para de ser close-minded.
- Ahhhhh "para de ser close-minded"! Como você é hipster.
- (Risos). Antes hipster do que pseudo-cult.
- Pf…
- Aiai…
- Agora é sério. Você jura que gosta de Britney Spears?
- Não, sério. O que tem se eu gostar? Ela é foda!
- Ela é foda? É uma vagabunda drogada, isso sim. Tem não sei quantos filhos e fica querendo se mostrar na TV.
- Uau, hein.
- Que???
- Sei lá, acho tosco quem pensa assim.
- Então vai, fala. Como você pensa?
- Eu não, parece que vai ser um sacrifício me ouvir.
- Por Deus.
- É, deve ser por ele mesmo.
- Ahn?
- Amém.
- Por que por
- Vocês e os seus valores.
- Que???
- (Risos). Tô meio alta já.
- Desembucha, criatura.
- Tá, mas só porque você pediu com jeitinho.
- (Risos). Desculpa.
- Eu só acho que ela nunca fez nada pra ser odiada.
- Exatamente, nunca fez nada de
- Ainda bem que eu que ia falar.
- (Risos). Desculpa.
- Eu só acho que ela tinha o estilo dela. Meio diferentosa, oferecida, queria dar pra vários caras e mostrar na TV a barriga chapada.
- É.
- E que que tem?
- E se fazia de santinha.
- Ah, marketing pessoal, meu bem. Você mesmo tá fazendo, ó. Barba mal feita, oclinhos de vô, "abomino Britney Spears"…
- Ahhh, tá bo
- Além do mais, no fundo no fundo ela não se fazia de santinha nada. Prenunciou tudo nas músicas dela que ia surtar.
- Ahhh, coitadinha.
- Pois é, coitada mesmo. Queria viver a vida dela do jeito dela e ficou o mundo inteiro enchendo o saco porque ela era maluca. Ficou maluca mesmo.
- Ah, mas ela ficou maluca porque o mundo encheu o saco ou o mundo encheu o saco porque ela era maluca?
- E o que tem ser malu
- Quem veio primeiro, o ovo ou a galinha?
- O homem. Depois vieram esses tabus ridículos que condenam todo mundo que quer ser um pouco mais out of the box.
- "Out of the box."
- Quê?
- Hi-ps-ter.
- Puta que pariu, você enche mesmo o saco.
- Eita. Sem educação.
- Hipster é você, que se acha um cultzinho por dizer que Britney é de má qualidade bla bla bla whiskas sachê, mas na verdade pensa pequeno.
- Penso pequeno. Tá bom.
- Aiai…
- Desculpa se não sou "open-minded" e se já é muito "mainstream" odiar a Britney.
- Não é questão de
- Ó. Esse programa aí é da hora.
- Que que é isso, Pânico na TV?
- É.
- Você reclama que tocam Britney Spears e curte ficar vendo mulher semi-nua e piada ruim na TV que nem com som está?
- Afe, que tem a ver?
- Nada não, deixa quieto.
- Essa mina é um espetáculo.
- Quem, Sabrina Sato?
- É. Barriguinha chapada...