terça-feira, 26 de novembro de 2013

Na vontade do Sol

Ventava. Era um dia qualquer do outono, o que em São Paulo não significa muita coisa. Em todo caso, as árvores estavam desfolhadas e, seu galhos, secos. Fazia frio na praça. O Sol, sempre um motivo de contemplação, se escondia. Não estava sociável, pra ninguém, salvo para as nuvens que faziam um belíssimo trabalho em ocultá-lo e ostentar a nós nada além de pequenas parcelas de raios. Só pra deixar na vontade.

Os desocupados que ocupavam a praça ocupavam-se também de se despreocupar. Tinham sacos coloridos de pipoca nas mãos, que tornavam tudo aquilo muito nostálgico e fazia do curso dos raios no céu cinza um lindo espetáculo (pelo menos um que merecesse uma pipoca). Em toda a extensão da praça, bitucas de cigarro e cangas com as pontas voando forravam a grama. Ventava, e o vento batia agressivo na pele. A maquiagem do céu continuava sendo o pequeno conjunto de raios escassos, num dia grisalho e com olheiras, sem vaidade ou rubor. O Sol descia e a maquiagem puxava de leve para os tons pastéis, mas ainda sem muita emoção. Cara-pálida esse céu.

Em meio à serenidade falsa na atmosfera, umas gargalhadas chegavam como numa invasão bastante agradável aos meus ouvidos. Aos olhos, aparecia no longe um sorriso sincero e, na pele, o vento era forte, ainda empenhado em cortá-la. Tudo isso era a felicidade de um homem lá longe, também grisalho e também com olheiras, como o céu, traduzida em sinestesia. O bem-estar na sua voz era uma metáfora pronta para invadir os sentidos alheios - e meus sentidos todos. Ele rolava pela grama dando motivos incessantes para que as gargalhadas de uma pequena menina se misturassem às dele e compusessem, sem querer, a sinfonia mais bonita que ouvi naquele dia. Com sete ou oito anos, a criança tinha pele branca e cabelos com todo o comprimento das costas. Ele usava calça jeans e camisa, embora não tivesse receio algum de sujar uma ou outra enquanto deitava e rolava de rir. Eram pai e filha, com certeza. Os dois riam do mesmo jeito, no mesmo timbre, no mesmo tom.

Passaram-se uns minutos assim e cessaram-se as gargalhadas. Ele agora falava sério com ela. Apontava, gesticulava, pedia com vigor. O que ele queria? Estava longe, eu não escutava. Estendeu a mão. Desconfiada, ela observou e hesitou. Ele insistia, repetia o movimento com a mão disponível e pedia ainda com mais insistência. O quê, não sabia dizer. Ela fez cara emburrada, deu finalmente a mão e, de nariz franzido, topou. O quê? Os dois andaram juntos e devagar em direção a uma corda bamba presa entre duas árvores, ele na frente. Depois de muito negociar, a menina presenteou o pai estendendo-lhe novamente a mão e, com uma ajuda, subiu na corda. Titubeou, levou um momento ou dois, e logo se equilibrou. O pai segurava os dedinhos e sorria um milímetro a mais a cada passo adiante na corda.

Imagino a pequena menina vinte anos no futuro. Sua memória afetiva certamente terá guardado o dia em que seu pai lhe forçou a andar na corda bamba do início ao fim. Ela terá virado uma ginasta olímpica, profissional de 'slackline', ou não. Fato é que ela se lembrará daquele dia pálido de outono, e de seu pai que sabia mais sobre sua capacidade do que ela própria aos nove anos de idade - e talvez ainda soubesse até hoje, duas décadas depois. Entenderá a força da ação e das gargalhadas do grisalho de jeans e camisa suja de terra, que naquele dia só precisou estender a mão algumas vezes. Perceberá que a confiança depositada por ele era maior que a que jamais tivera nesse tempo todo. Duvidará que vinte anos depois pudesse finalmente andar na corda bamba sem que lhe dessem as mãos, e então lembrará que o apoio do toque era caloroso, mas servia apenas de apoio, pois o passo a passo ela havia feito sozinha. Sorrirá então e, se tudo der certo, encontrará um meio de caminhar só, e de seguir caminhando sem o calor das mãos.